23 de dez. de 2010

ODE AOS PÉS




entre os pés e a terra se caminha
esqueça, portanto, à porta de casa
o cadarço, os sapatos, as meias
caso não queira ser levado sem saber
a caminhos que nunca se sentiu

deixe cair por terra os pensamentos
que ultrapassam as veredas dos pés.
fique descalço como quem fica nu
não acredite nos passos posteriores
nem nos anteriores aos seus pés

todos se cansam rápido do caminho
que fora do corpo dizem existir.
muito se disse sobre as avenidas
no entanto, à medida que se aprende
detestável é o percurso que se sabe

não se lembre dos passos além
não se deixe levar pelos rastros
num dia vão verá que a passagem
terá sido aquela que nunca pisou,
que nunca esteve aos seus pés


Recebi um email de Ronaldo Nunes. Grato pela leitura e pelo comentário. Reproduzo-o no blog:
"... Você segura o tema com delicadeza mas com mãos firmes para não correr o risco dele perder a referência e derivar o rumo ao sabor do vento ou do momento. O tema corre sempre debaixo da sua vontade como costumam se comportar quando guiados pelos talentos dos grandes poetas..."

13 de dez. de 2010

Quem repousa não fica em silêncio


quem repousa não fica em silêncio
não há nesse instante qualquer esforço
como faz quem se empenha em silenciar

quem pretende nele pensar se enreda
numa insistência de quem não esquece
numa calma fingida de quem se cala

quem repousa não busca o silêncio
se põe num assento como um cão
deitado numa calçada e tranquilo


*foto sem crédito encontrada na net

O poema "A partir de hoje não lhe trarei mais flores" foi publicado no blog "ao longe os barcos de flores" da amiga Amélia Pais. Muito grato. Adorável estar neste barco. Para quem quiser visitar: clique AQUI.

27 de nov. de 2010

linhas da boca (ou copo da boca)




beber no móvel de círculos
como se enrola a um pescoço.
balançar nas bordas
à beira das águas do copo
que a cavidade escancara

não é de vidro ou plástico
mas daquela malha das bocas
que resiste aos altos graus
do que entorna
sem agravo qualquer

apenas abrir os lábios
na finura de um céu aberto
que bem aos poucos sente
derreter feito a alvura de nuvens
quando do alto vêm molhar

apenas santamente abri-la
como quem se abre ao cálice
ou como quem brinca de abri-la
embaçar a janela num dia de chuva
para escrever e apagar

resvalar por bocas variadas
valer-se dessas águas quentes
cópula dilatada que desliza
aos dentes, à língua
ao palato duro, ao mole
ao céu, ao alto:
abóbadas da boca

19 de nov. de 2010

Conversas I

Comecei uma conversa interminável com um amigo. Por email trocamos palavras a partir de alguma coisa que se leu sobre o silêncio. Diria ele que esse início é um paradoxo. No entanto, para mim, como nada está em silêncio, não passa de uma extensão da fala. Tal conversa vou postando aos poucos neste blog.
Amigo: Gostei de ler “onde está o silêncio das coisas?”. O que tem a ver ruído com som? Um é incompatível com outro. Não sei como pôde pensar em conciliar.

Jefferson: Não pensei em conciliar. Não terá você em mente uma teoria da comunicação que entende ruído como uma interferência que acontece durante a comunicação. O estrondo de um motor, nesse caso, poderia ser ruído se atrapalhasse nosso papo, se não conseguisse me ouvir, não é isso?

Amigo: O motor de carro ou de ônibus é sempre um ruído, Jefferson. Interfere sempre um pensamento, uma conversa, um sentimento. Sempre interfere.

Jefferson: Não é um ruído, amigo. É a fúria das cidades. Interfere, claro. Mas ruído é som que nos ensina a inventar uma palavra, por exemplo. Ruído é o que produz o mar quando se movimenta; é estalo; é poesia. Som é o que se ouve dele. Estão juntos.

Amigo: Um prazer perceber o paradoxo do nosso diálogo. Do silêncio também se pode escrever.

Jefferson: Será que tudo não é paradoxo? Ou paradoxo é tudo? Mas o que é assim nem mesmo se define. Não se nega e nem se afirma. Basta dizer que o silêncio se apresenta em som. Não é uma questão de existir ou não. 

5 de nov. de 2010

sobre o silêncio, dizia o místico...

- Dizer menos para entender mais,
dizia o místico, dizendo ainda:
- Silêncio deviam fazer todos os homens
O divino em nós se transforma
Quando a boca se cala.
contudo a voz do poeta soou
e disse a ele que já queria seguir:
- Não há silêncio, a não ser que tenha se esquecido
De que se fala como quem ouve
E se ouve e se fala como quem canta.
lá foi ele e o poeta pensou consigo mesmo:
_ Coisa mais louca é viver no deserto da palavra
pensando que fora Dela está o oásis divino.

22 de out. de 2010

ESGOTADOS



bebem sempre da última gota
vão ao fundo do copo
ao fundo do que poderia vir
até acabar do que restou.
bebem do que virá
de todo porvir
de todas as hipóteses

secam o chão
a rua, o mar
e tudo paira plano.
depois de desertar
enchem de vazio
como faz um trator,
como as máquinas voadoras
vigiam sufocadas
as alturas de dominar

pensam sempre antes
mas sempre no antes do antes
esgotam um pensamento
até o pensamento os esgotar.
tiram tudo de todas as coisas
depois, deitados, ainda esperam
a drenagem do esgotamento.
chegam a muitos caminhos
e caminham até o fim
até onde o fim se faz parede
foto sem crédito encontrada na rede

10 de out. de 2010

onde está o silêncio das coisas?





onde está o silêncio das coisas?
me disseram que se pode ouvi-lo
mas se ouço o silêncio da flor,
já não faço falar o silêncio dela?
afirmam que há o silêncio dos pássaros
mas ninguém atenta ao canto,
ao ruído de suas asas?
nem as cachoeiras são silenciosas
dizem que seu som são lágrimas que escorrem.



e o mar? as ondas calmas
ou agitadas
sempre marulham.
por que querer ausentar-se do ruído do mar?
mar, mar, mar, mar, mar
palavra quando falada lentamente
vira o mar guardado em audição.
se não ouvíssemos o ruído do mar
não teria surgido a palavra mar
que salga a voz e molha a língua



*foto encontrada na rede

27 de set. de 2010

Noturno




sobre   a   cama   ouvir   quase   adormece
            os olhos cerram entorpecidos da noite

devagar   é   o   quarto   os   livros   as   paredes
            a porta entreaberta e a fraca luz que entra

em   cores   pontos   claros   pontilham   ao   ar
            o corredor que se entrevê já quase dorme

a   cama   se   acalma,   o   sono   a   cabeça   descansa
            ao lado o odor conhecido de sossegado corpo

pela   janela   clareia   cheia   de   luz   a   lua   de   fora
            sem pressa os dedos se movem e a vista embaça

o   verso   se   estende   lento   a   vozes   que   surgem
            não há qualquer impaciência de findar o que se vê

lentamente   a   luz   noturna   pelo   quarto   ilumina
            velhas esperas adormecem vestidas de exílios

por que   querer   enxugar   a   noite   à   meia -   luz ?
            que importa saber se chegou a hora da meia-noite?

13 de set. de 2010

FLORES




a partir de hoje não lhe trarei flores
apesar de inverno, lá fora podemos encontrá-las
florescem ainda aquelas resistentes ao frio

se lembra daquelas do último verão?!
que dentre as que murchavam havia
outras que surgiam coloridas?!
a vida assim não haverá que se dividir
porque em qualquer das estações sempre há flores
não se frustre em esperá-las

ao invés de lhe trazer flores
para ornar de cores sua beleza
ou tecer alguma coroa aos deuses
ou colorir uma revelação no altar divino,
vamos a elas nesta hora fria do dia
um frio que nem tão forte é que nos impeça de sair

fora de casa nada nos vem como prenda
o que nos vem é mais que isso
nada mais nos é do que vê-las
esquecemos de ter ou de receber
e nos despimos dos conhecimentos
de esperar raridades alheias
como hoje esperou por mim
pensando que traria uma rara flor

a partir de hoje não lhe trarei flores
vamos sair, chove muito pouco
um chuvisco apenas
vamos juntos, sabemos onde
nos esperam muitos hibiscos

10 de set. de 2010

Um poema no blog "Sedimentos"

foto: internet
O blog Sedimentos publicou o poema Estoque. Fico feliz, pois acompanho frequentemente o blog da Teca. Um blog no qual sempre se podem ler poemas. Muito grato! Para quem quiser conferir, clique AQUI para ser redirecionado.

5 de set. de 2010

COMO QUEM NÃO QUER NADA

existe um corpo que pede
olha e cumprimenta.
solicita que não o pense,
se move e não induz o nosso
a ir ao que não se quer

convida como se não nos seguisse,
e quando nos aproximamos os corpos
já conhecemos um ao outro
numa plenitude que não se sabe.
nos encontramos todos os dias

sempre casualmente
feito belos animais que surgem
de repente na esquina
caminhando lentamente
como quem não quer nada

23 de ago. de 2010

ESTOQUE



chegou o vendedor e me disse
que não havia livro de poema
daquele poeta que lhe perguntei
lamentamos, senhor, mas não há
mas posso trazer outros livros

me disse ainda que os poemas
estariam em minhas mãos de imediato
viriam das pilhas da distribuidora
mas de imediato vi apenas livros
na estante acumulados, escondidos

nas camadas guardadas de poeira
no objetivo das contas de inventário
em que se somam horas, dias e anos
dentro de espaços em aparelhagem
entre folhas de livro atacado ou varejo

e assim continuou falando da breve
atualização dos acervos no estoque
armazenados em curto prazo de tempo.
a ele nem respondi, não esperei saber
contudo digo que de lá saí com um poema

antes só havia perguntado: poema?
eu vi, tu viste, ele viu e me deram
estoques, reservas enredadas.
mas nenhum poema nunca faltará
porque existe com ou sem falhas de loja

antes só havia perguntado: poema?
e me trouxeram quantidades
necessidades, fornecimentos.
mas a porta da livraria se abriu
esqueci o vendedor e o livro

e lembrei que a poesia não falta

por isso, de lá saí com este poema

11 de ago. de 2010

deitado fico

deitado fico
as sensações se esticam
como pernas que na poltrona relaxam

de tão flexíveis os movimentos
crescem agora num pensamento
que vem do sul
carregando consigo nuvens que irão chover.
.........borbulha no quarto
a chuva que começa
.........no chão estalam as gotas
.....a cama já encharca
o ar úmido tranquiliza
a parede se molha
se erguem meus braços

deitado não sei mais
se eu me estico ou o meu pensamento
nem me importa saber

mas o músculo da sensação continua se alongando
deitado fico
sobre a cama mergulhado
feito o corpo horizontal da água
que se banha a si mesmo
numa lagoa
numa poça d’água

2 de ago. de 2010

CORPO PLANO


seus olhos de papel têm
uma vida plana de não ver.
por que esqueceu o rosto
e me trouxe em estampa?

quando o vejo se vaporiza
se tento lembrar se espalha
se perde como na textura lisa
da foto que hoje já está velha

não há marcas nem cicatrizes.
por que não deixar o rosto
ondular, crescer feito um monte?

o que há em você está plano
um pampa nos panos da pele
sem relevo, preso a um muro

*foto sem crédito encontrada na net

21 de jul. de 2010

Lâmpada

a lâmpada trocada
agora já pisca
aos poucos
ligando.
pode ver?

há dias se pendurava
queimada, quebrada
neste quarto.
já nem queria mais
trocá-la, lembro

escondeu-se no fumê
da camiseta.
dentro da cama ficou
acariciava lençóis
imaginava-os limpos
encardidos

os pés no escuro
de seu escuro escondiam
o tecido de seu tecido.
imaginavam luzes
vibrantes de receio.

mas se agora no instante
em que mais sente
este manto descobrisse
a bermuda se abrisse
o lençol fosse um lençol

e da falta de luz abrisse
o escuro de tocar sem saber
abrisse todo o gosto
de um calor noturno
para além do limpo e do sujo

a lâmpada trocada
agora já pisca
aos poucos
desligando.
pode ver?

12 de jul. de 2010

COLHEITA


I

muitos mortos de repente falam
as vozes ecoam nas lápides
nos túmulos, nos nomes, nas caixas
na data de nascimento e morte

quando eu morrer me ponham
sob a terra como os outros
mas acima não ponham nada além
só o verde das gramas que crescem

II

Que a terra me absorva como adubo
Que me transforme, extraia de mim
o que me dissolve para fertilizar
bem longe das terras sepultadas

e quando assim lá eu estiver
de mim ninguém mais se lembrará
contudo as pessoas sem saber
vão me ver vibrar, ao vento, todo verde

1 de jul. de 2010

como quem olha da varanda


não fico como quem olha da varanda
como quem fica somente com o meio
com a linha da sombra na parede
que me divide o sol matinal
me repartindo a manhã
metade dentro, outra fora

desço as escadas, abro a porta
fico com o corpo todo descido
do lado de fora assim deitado
sob a luz que escorre e afaga
me tira a roupa e comigo sorri
e correndo vem a hora nos encontrar

*foto sem crédito encontrada na net

21 de jun. de 2010

FLOR NO COPO

fotografia de Josef Sudek


me lembro de uma flor
não foi posta em um vaso
mas em um copo cheio d’água.
sobre a mesa passava a existir
mais que qualquer outra coisa,
até mais se estivesse ali um ramalhete.
sobre a mesa se podia ver sozinha.
também a colocavam à janela - lembro.
enchia soberana o espaço
meus olhares focavam a solidão
olhava e olhava como se uma forte luz
pairasse acima das pétalas
finais que ainda se abriam.
mas pensava nela que não sentia
nem reclamar podia.

saída da terra, habitava agora a água
como se fosse aquática
para durar mais um ou dois dias
talvez horas, segundos.
para mim não era natureza
nem viva ou morta.
nunca entendi por que
era retirada de seu chão
que ficava logo atrás da porta
num jardim sem cercos.
seria apenas dar uns passos e olhá-la.
mas, não, sempre a retiravam da terra
para fazer habitar a água.

e assim a beleza da flor
se extinguia quanto mais e mais a olhava
num copo cheio d’água.
pensaram no ornamento
agradável e alegre da casa,
mas uma flor nunca sabe
que existe, nunca mesmo se sente
solitária dentro do copo,
mas eu que sinto
às vezes demasiado
em mim surgiu
(pela primeira vez me abriu)
a solidão em mim sendo
com aquele branco da flor
fora da terra
dentro d'água

(JEFFERSON BESSA)

7 de jun. de 2010

PÊSSEGO


nem pedirei qualquer coisa que lá esteja
estou no meio destas mãos que me arredondam.
e também o gosto alcança os dedos como
a ponta dos pés se levanta e no alto toca
o farto fruto da pele meio amarela
meio morena, úmida de terra e chuva.

ponha-me agora como um alimento fresco
que mordido nem saúde ou doença traz.

sem lavar, sem limpar a poeira do vento
ponha-me inteiro na vez calma da boca.
deitada aos pés por entre o lençol da carne
a árvore do corpo se descasca e desfruta
o gosto que se ergue já assentado na terra
como a nudez do redondo sabor de pêssego
.

31 de mai. de 2010

CORPO LIDO




no meio da página
respira úmido
o poema é corpo

o céu reflete a folha
nua a mostrar os braços
na dança escrita

pelo paladar escorrem
diversos sabores
de versos ingeridos

no leito da audição
da boca sai o som
a dizer claro sussurro

na ponta dos olhos
se vê a pele tesa
a letra tateando

sobraram palavras
a noite farta vai arrastá-las
às entradas do corpo lido

24 de mai. de 2010

PISCAR

vejo nos dias a luz se apagando
no piscar incessante dos olhos
que descansam assim sozinhos

a ardência servil de observar,
o trabalho de acender a alma
descansam na presença de esquecer

clarão visto em lentas vezes
por entre os cílios se ofusca
se acende feito constelação na noite:

feito quando os raios escalam
o horizonte pelo céu na manhã
no aceno de alongar as sombras

enquanto tudo se abre e se fecha
sei do piscar de olhos na rasura
a esboçar o que por mim passa
foto encontrada na net sem créditos

22 de mai. de 2010

O poema Pernas cruzadas foi publicado no blog Poesia Diversa de Hilton Valeriano. É uma satisfação por ser um blog de poesia que acompanho sempre.
Para quem quiser visitar: clique aqui

15 de mai. de 2010

QUEDAS

as quedas que se abrem
têm no som os ruídos
menos estrondosos que
as ruínas dos poderes,
não têm ouro a se perder,
nem o que pecar,
não têm desventuras
nem mesmo um fim

me ponha nos olhos, queda,
a atenção para crateras
que meus pés calçam,
cair com os buracos
e desabar como queda d’água.
me traga o pulo dos tombos
para andar pelo desenho
mal feito das ruas

a outras quedas me largarei -
tenho uma queda pelos beijos.
vou perder a força no declinar
e me derrubar a todos os lábios
e me deitar em todos os braços.
seja hábil, queda, às minhas pernas
para faíscas brilharem
quando ao chão derrapar

*alguns créditos das imagens inseridas na montagem: no fundo, O beijo de Pablo Picasso - que também aparece no canto superior direito. No canto superior esquerdo, O beijo de Munch. As outras foram encontradas na net sem créditos.

6 de mai. de 2010

pernas cruzadas


logo que chegou ao bar
seu corpo pediu todos os olhares
mas num instante o vi falecer
embaçar.
o corpo que não transpira
derrete
para se fixar em poses.
e assim foi.

sentou-se à cadeira
de pernas cruzadas
e de tão embaraçadas
as pernas se fizeram
grandes bengalas
que assim carregam
a beleza que pesa
e que arrasta no rosto.

ah... mas se este corpo
chegasse
sem dar ares ao cheiro...
se este corpo
escorresse
a água da pele
pelo salão
e borrifasse às minhas narinas...


30 de abr. de 2010

Duas versões para Alguidar


Escrevi duas versões para o poema Alguidar. Depois de escrever uma versão (a primeira na sequência da postagem), parti para a outra sem "desfazer" a anterior. Por fim, reli as duas
e pensei em postá-las no blog.
Abraços!


hoje preparei um alguidar
não sei o que traz dentro
julgam erro na medida dada
erro na espessura e na cor

mas se agora de uma só vez
depois da hora mais fácil
dissesse aos olhos planos
que a simetria, se houver,

remexe ainda e muito mais
no barro a que pus os dedos
nas mãos que hoje se erguem
frescas no lugar com a terra úmida

****

fiz um alguidar – não lembro quando
numa hora dessa qualquer
nem lembro se havia qualquer coisa dentro
mas sei que o julgaram errado na medida
desproporção na largura, no comprimento
as laterais não tinham a mesma altura
um lado era pouco mais elevado que o outro
a espessura e a cor variavam no todo.
mas se na vez de agora dissesse que a simetria
está no lugar das minhas mãos remexidas
da argila viva nos dedos que ainda úmidos
frescos o entregam assim molhados de terra
*foto retirada da net

23 de abr. de 2010

Caixa

ganhei uma caixa do presente
......E de pressentimento me cobriu

porque abri antes de mim

abri o que esperei de antemão
......Tudo o que soube é o que poderia ser

desperto em infinitos raios

dentro da caixa me embrulhei
......Esperei na antessala

nem mesmo soube caminhar

antes de mim desembrulhei
......Rasgando a sua matéria

mas estava sim me fechando nela

antes de mim abri a caixa

...... Me fechei de olhos

e espero de mãos vazias

14 de abr. de 2010

chão da pele

desço
ao plano das águas salgadas
mas não as dos mares

levanto o copo da boca
ao brilho
do suor do corpo

erguem-se os braços
desnudos
me lavo em branca espuma

no alto
firma minha mão
num músculo alheio

a hora encharca,
o que tange se agita

vou cavando os dedos
pelo chão da pele

revolvo essas terras
suadas em que chego

7 de abr. de 2010

PAREDE DESCASCADA

Minor White - Peeled Paint

Rochester, New York (1959)



move-se o estalido que abre a casca
voz no canto inferior da parede
onde o horizonte do quarto se levanta

sem pressa o som se ergue
na parede a camada de vida vibra
a tinta se abre, desprende-se do concreto

o ruído crescente de galhos
a pequena árvore que irrompe
tronco espesso rente à parede
- madeira de casco denso – tremor de fissuras

rebenta a cor, sobre o concreto se movem as linhas
no quarto brotam as rachaduras
fraturas
cicatrizes

sobem linhas a caminho – rios se desenham
balançam como o vento de fora.
não há que ver por dentro
nada há dentro da tinta
não há nada atrás da parede
a descasca brilha na quina do quarto
logo ali onde se pode ver como fruto
como se abrisse pela primeira vez
sem saber ainda o sabor

31 de mar. de 2010

Insônia



quando acorda um poema
nos olhos pisca o contentamento

com presente densidade entra
o abraço entre o rosto móvel

de sua boca sopra o som certo
e no quarto aviva nossa insônia.

o verso desperto se põe de pé
erguidos queimamos feito vela

vejo a sua hora de sair
o poema se fez,
a vigília vai embora

de outro lugar vem chegando o sono
vem vindo me falar,
adormecer



23 de mar. de 2010

o estar simples do mundo




escorrego como quem lambe
o estar simples do mundo

brinco danço beijo
sinto fácil o olhar no toque


leve língua no mamilo
em pessoa que esquenta.

lisamente desce a transpiração
calma de só poder ver o rosto:

é vê-lo mais do que pode Deus,
porque seu corpo em mim jamais perdeu

a úmida placidez de ondas serradas
que roçam e veem na face coração.

17 de mar. de 2010

VERSOS FELIZES



noite cansada
abateu-me uma grande fadiga
sono mal dormido
versos e versos se passaram antes de dormir.
queria moldar o poema a uns versos felizes
poderia estar aqui falando de outros tristes
contudo, meu sono também não teria dormido bem.

fui imperativo ao escrever os versos
quis fazer de todos muitas linhas ditosas
imaginei mostrá-los como se deles prosperassem
como se neles se inscrevesse a felicidade
preparei a conversão possível
revirei de muitas maneiras as venturas sintáticas
vocabulares imagéticas sonoras
venturas estruturais no pensamento, nos tropos
catei por todos os cantos: partes
qualidades elementos porções quantidades

sobre mim desceu o dever de fazer uns versos felizes
não violar jamais esta necessidade
mas fiquei por essas linhas tão embaraçado
que pendente, pendurado fiquei
na corda em que estava embrulhado

por isso no cansaço permaneço
ainda moldado aos versos felizes
à noite não vi em nenhum instante brilhar o poema.
vista em noite mal dormida

a satisfação se tornou desta vez imperiosa


14 de mar. de 2010


O poema Para me chover foi publicado no Portal Entre textos.
Para quem quiser conferir,
basta clicar no link a seguir:
Portal Entretextos.
Fico muito agradecido e feliz, já que é um site que acompanho sempre.
Abraços.

Grato ao amigo Rogel Samuel

8 de mar. de 2010

nenhum outro mundo me delicia


quando nu está ao meu lado
é da pele que tenho o perfume
na hora de sentir próximo

rasa respiração pelos fios
no crescente que o envolve,
mas desperto ao que me traz

cerrando meus olhos à noite
seu aroma não me embriaga
sozinha a mente se aquieta

braço firme que ao fluir
reconheço no fulgor táctil,
na textura a que simples atento

conduzido por suas linhas
sinto a presença em plenitude
nenhum outro mundo me delicia

*fotografia de Jefferson

1 de mar. de 2010

para me chover


permaneço no quarto que não se abre
a chuva já começou a cair
a rua está úmida, as águas acontecem
abriram-se as portas, mas a demora
me continua na noite do calor passado
sentado ainda no ontem que estou.

demorado quarto dentro de paredes
arrastadas na distância de banhar-se.
à espera do lentamente vir do tempo
e no espaço, desembrulham as camadas
pintadas de concreto resistentes ao frescor
confinado no intervalo anterior à manhã

aguardarei a hora da tarde para me chover.

22 de fev. de 2010

ontem de um verso

retomar aquele verso no agora da manhã
mas ontem havia sol, hoje está nublado.
talvez não fosse ele pouquíssimo
como quando se afirma que um verso é
menos belo que um outro do poema.

fosse pouco, tivesse escrito ou ressurgido
o verso-ontem não relembraria o de agora.
era ele mais solar, de alta temperatura.
o de agora amanheceu nevoento, quente
sem chuva, um outro verso de momento.

talvez seja ele pouquíssimo
tão pouco quanto o pouco da lembrança deixada.
e me diz:
“retido no tráfego do corpo”
dizia outra coisa? ou era ele assim?
já é um outro.

ânimo do poema de agora só querer ouvir
com tímpanos doloridos o que fez do que não se fez,
este aqui é o ontem de um verso

16 de fev. de 2010

odor da carne



em você todo tremor
está no odor da carne
no suado paladar de beijo

não há nenhuma tontura
que se espalha das pernas
abertas às minhas mãos

não há mesmo nenhum deus
entre a mirra e a canela
da água eriçada das peles

eleva-se o toque crescente
sob o calor da noite, do dia
na firmeza do aroma forte

sinto o rosto hortelã de sexo
que adensa no ar, evapora
desaparece sem vertigem


*foto sem crédito encontrada na net

9 de fev. de 2010

largo de pele


em mim não se retém o medo
logo depois ando e sinto-o leve escoar.
não é a coragem que o faz ausente
e medo algum me desencoraja.
quantas vezes ameacei o medonho
e dava sobre ele marteladas de coragem.
quantas vezes busquei uma coragem
que acreditava estar no armário do medo.

mas o temor sinto e sozinho se esvai
sem os arredores da coragem admirada.
a bravura não corre pelos obstáculos
muito menos elimina o Mal
porque não se faz Bem, nem Força ou Morte.
se há alguma grandeza na coragem
digo do seu corpo grandioso e largo de pele
e por entre meus braços cresce ainda mais.

não enfrento o medo nem a coragem
nem o que escorrega do meio de seu peito
porque quando o poema se encoraja desliza
desce por mãos fortificadas, elevadas
do olhar dessas alturas de cair
sobre o rosto do beijo, da língua
dos dedos e cabelos
tudo assim erguido de corpo.

3 de fev. de 2010

ele me disse ao ouvido


para um amigo

depois de ouvir uma homenagem
em comemoração a um poeta
saíram os doutos homens da sala
julgavam da maior importância
celebrar a morte, a obra do bardo.
neles havia o prazer mórbido
da morte viva no tempo dos versos
em meio a datas e anos - feito missa.


depois de sair da sala caminhei
o trajeto se abriu em vil eternidade
e toda a idade da vida e do porvir
não existiu mais enquanto andava.
um verso ele me disse ao ouvido
li e em silêncio estávamos nós:
eu e o poeta sozinhos na rua
festejamos juntos naquela noite.


foto sem créditos

29 de jan. de 2010

ser desconhecido


quis o nunca visto – o nunca conhecido.
é como olhar o profundo de um poço;
não ver, mas saber – lá está ele.
e quis assim conhecer o desconhecido

ainda assim desci ao profundo
escalando todas as paredes doentias
em novas loucuras de pedregulhos
desci na busca do novo desconhecido

mas encontrei e conheci o fundo
me perguntei com o corpo já boiando
se na verdade nadei em águas estranhas
uma vez que cheguei, vi o desconhecido

sorri e voltei à borda do mesmo poço
e neste lugar ficarei para não mais sair
o que se desconhece deixarei lá onde está
simples: existe no ser desconhecido

agora desaparece por inteiro esta palavra
nem posso mais escrevê-la, nem dizê-la
– quando dita diz sua morada
uma palavra sempre diz sua existência

foto sem crédito encontrada na net

26 de jan. de 2010

mais cedo mais além

meus pés amanheceram hoje mais cedo mais além
do nosso sexo ontem à noite

meu passo acelerado pela casa me traz de repente agora
esta fotografia feita há três dias:

de pé fiz esta pose sem rosto - ombros e peitos estufados
de um corpo bajulador

cedo lavei todo o odor de sua mão que me passou no descanso e
no declive visível de meu pescoço

pensei – me lembro - na passagem e assim me coloquei inteiro
na clareza da escada do tempo

sob a capa do breve e do imperecível o simples vira uma pedra
polida feito uma ideia sem saída do lugar

e minha pele se assassinada ficará ao servil de um espectro
que um dia a fez instrumento

agora já estou na cama - sem a volta - e ficarei até anoitecer
sob o lençol úmido de seu rio

e seu dedo na firmeza crescente por entre dentes já sinaliza a
face do mamilo trêmulo em minha língua

23 de jan. de 2010

O Branco e o Mal nos 'poemas-corpo'

Um amigo me enviou um email (fico muitíssimo grato) no qual me comentava sobre a influência do Mal nos ‘poemas-corpo’ e que, por isso, eles se tornam ainda mais fortes e belos, pois a arte maldita representa a grande e necessária infração moral. Contudo, em resposta, digo que estes poemas não estão sob o signo da maldição. Por isso, não são malditos.
A sensualidade maldita ou marginal toma força, sobretudo, com os românticos. E, depois, como se sabe, aparecem outros enquanto ecos. Sim, estão submetidos ao Mal. A presença da lascívia para a maldição e para a marginalidade se relaciona à transgressão de estar do lado oposto à moral “superior”. Assumem tal papel. E andam pelo lado selvagem. Sentem deliciosamente o prazer condenado. Descobrem que pode haver a beleza do Mal, porque há o Bem.
Os poemas-corpo entendem que ser maldito está no oposto de ser bendito, mas ligados por uma mesma linha que os dispõe bem próximos. Na mesma proporção, ambos se subjugam, porque ouvem uma mesma ordem, ao prazer do feitiço e ao prazer da bondade. Quem está no ‘corpo’ nem pensa em lançar flechas ao que liberta nem ao que reprime. Há uma satisfação que não está no corpo por si, mas em senti-lo. E que se eu disser o que ele é não o será mais. Sinta-o.
Mas, se os poemas-corpo transgridem, conforme você diz, isso o fazem porque não querem transgredir. Então, o branco – por ser o mais antigo – não está na oposição ao ‘preto’ (afirmação que faz alusão a um poema anterior). Ele é branco de uma leveza que não divide bondade nem maldição. É simplesmente corpo e, dessa maneira, vamos à direção certa das profundezas superficiais da pele.

18 de jan. de 2010

branco

brilha sob a luz desta noite
e vaza do corpo profundo
o mais branco e mais antigo
- branco líquido de leve tinta.

molha por inteiro este poema
como o branco dos olhos, do papel
do leite que se bebe - melando
a ponta da língua em cada verso.

ficar suspenso neste galho, nele
saltar, mover-se no balanço de deixar
vir à tona a camada do branco
que jorra de todo este poema.


11 de jan. de 2010

todo lugar vira outro


todo lugar vira outro.
quando chego já me retiro.
ou quero voltar. ou ir.
ou quero chegar. ou ficar.
é tão absoluto ficar onde não-fico -
solto-me do lugar e
na estabilidade de onde
não-chego
é que chego

o sempre transportar
ultrapassar portas
soltar–me de todas elas
subindo rampas
pontes e viadutos.
subo escadas
da minha subida no subir
a sempre dar saltos

saindo e entrando
pelo lugar que é outro.
contudo o lugar-outro
é tão correto, tão ele mesmo
que me retiro
e me vou para outro

eu e lugares independentes
desligo-me

faço estar onde não-estou

5 de jan. de 2010

luz laranja fim de tarde



na luz laranja fim de tarde
desce o odor de dourado táctil
na leitura erguida que abrasa

por entre o azul que cintila
se desnuda quente deste verso
o inundado vermelho da tez fina

na cor destes olhos vou deitar-me
mergulho do que no corpo percorre
para todas as cores lamber

feito o declive do tecido rasteiro
e quase plano da língua do sol
que eleva a coragem de ver corpo
*fotografia de Jefferson Bessa

1 de jan. de 2010

Aquário


toda coisa tem seu aquário
que a nado passa nessas águas.

contudo é de um azul encharcado
embaraçado entre algas.

confluência escorrida fluvial
na brecha aquariana de passar.

desce por um fio como rio
como braço estendido.

todo aquário nasce rachado
como o rio tem uma boca.

todo encontro é como enchente
para fora das suas águas.

Pintura retirada da net e sem créditos. Ela representa Aquário (décimo primeiro signo do zodíaco).