10 de nov. de 2018

GUARDA-CHUVA

quando abro guarda-chuva
não me guardo,
me abro e guardo gotas:
molhado feito o homem
que, antes de inventar
e abrir o guarda-chuva,
esperava, só, a chuva fina
e sob a árvore guardava
gotas das finas águas

por isso nada tão estranho
quando se ouve vou abrir
agora meu guarda-chuva,
porque há, sim, um cismar 
de alguém que se guardou-
da-chuva, talvez sem se dar 
conta de que vive um guarda-
da-chuva

mas quem guarda a chuva
se abre às gotas se esvaindo,
goteja junto dos telhados
desce fluente dos arames
se senta como uma poça
se deixa aguar de chuva fina
se deixa molhar, se enxaguar

2014

19 de set. de 2018

DESATAR-NÓS


Desatar o nó na garganta
Retirar fio a fio devagar.
Engasgar e desfiar o nó
Simples, duplo, cego,
Nó direito, nó em oito, nó de sapato.
Até se nós fizermos juntos nós na garganta 
É melhor desatar o Mesmo.
Muitos fios se envolvem em nós
Como pedra fundamental em durezas 
Que por costume não sentimos mais os apertos.
Atenção aos nós para desatar-nós:
Quando caroço intruso e embargador de voz
Que se quer entrar e nada se deixa engolir.

(Foi ontem, um nó se fez, a garganta quase se fechou 
E uma irritação começou, continha um engasgo.
Quase caído no aperto, quase deixei dar um nó,
Eram fios sentidos como formigas na garganta.
Pensei que estavam dormentes,
Mas saíram lentamente como saem da terra.
Foi quando de repente surgiu uma vontade de sorrir
Do aperto dos laços, dos refluxos, das palpitações.
Pensei que fosse sair gargalhando
Então sorri fio a fio)

22 de jun. de 2018

CLANDESTINIDADE

Por mais que não me olhe
Imagino que imagina quando olha,
Mesmo que a cidade nos estreite
Na sua mesquinhez e no seu espaço
No entulho de objetos e pessoas.
Por mais que não me olhe
Imagino que imagina quando olha,
Mesmo que só pense em sua aparência
E a vida se espalhe cheia de cotidiano,
De exageros e besteiras.


Pode imaginar muito pouco,
Mas se imagino em demasia
Vejo o que imagina em você,
Me imagino assim e me deito
Naquilo que invento e entro
Às escondidas em amplitude.

Não acredito no que sou
Nem naquilo que você julga ser,
Pois deixamos de ser quando vistos.
Não importa a largura e a altura
De como nos imaginamos,
Mas uma coisa nos destina:
Ocultamente encostamos um no outro.


23 de abr. de 2018

OS OLHOS COMEÇARAM A PENAR



às vezes as coisas no homem
dão assim para penar.
e na pena de pensar
e de pensar penando
os olhos começaram a penar
como uma vizinha
um mendigo, uma montanha
como pena esta cidade.
de tanto olhar acabei nesta pena
com um sorriso no canto da boca
(se fosse em branco
como é o branco
não teria pena daquela folha.
mas numa folha impressa
cada pena é a letra da folha.
se fosse folha de poema
mas é folha de jornal.
se fosse folha de árvore
jamais teria pena
mas essa pena é quase
quase uma pena de ave
que na doença perdeu as penas)
às vezes as coisas no homem
dão assim para penar.
como aquele que um dia
esqueceu o leve da pena do pássaro
para dar à pena da composição
o seu grande espírito
que, arrebatado, sentiu dor
e deu à pena a forma de bico
se viu feito um pássaro
mas, sem voo, escreveu
a doença do sentido pena

Do livro Água Fria (2017)

20 de fev. de 2018

VIAGENS ENCALHADAS



Navego ainda em um navio
Que nunca saiu do lugar.
Ouve-se o ruído de cordas
Antigas ou novas e paradas.

Pensa sempre que está além
Desse embaraço. Pode ouvir
Ao largo as vozes de viagens?
Sorrisos, resíduos e vazios.

Que distante volta me provoca!
Amor, não venha com arrogâncias.
Bom seria se viajasse ao lado
De tudo que não saísse do lugar.

Mas pelo visto vai recusar,
Seu olhar sem saber se repete:
Acha melhor ficar encalhado
Em outro país ou na esquina.

2017

7 de jan. de 2018

INSTANTE


na hora do fastio
de pouco dia
de pouco ar
de hora ou segundo
de muita ou nenhuma
poesia
de falta ou de muita
palavra

sem poema
sem pensamento
sem linguagem
um cão se deita
deixe o mundo passar

seja dia ou noite
quarto ou varanda
seja no meio do mundo
no meio da rua
sentado a uma cadeira
uma mosca passa
deixe tudo estar

no opaco, no claro
deixe o mundo passar
se deitar