14 de dez. de 2016

Sobre o silêncio, dizia o místico


- Dizer menos para entender mais,
afirmava o místico, dizendo ainda:
- Silêncio deviam fazer todos os homens
O divino em nós se transforma
Quando a boca se cala.
contudo a voz do poeta soou
e disse a ele que já queria seguir:
- Não há silêncio, a não ser que tenha se esquecido
De que se fala como quem ouve
E se ouve e se fala como quem canta.
lá foi ele e o poeta pensou consigo mesmo:
_ Coisa mais louca é viver no deserto da palavra
pensando que fora Dela está o oásis divino.

29 de nov. de 2016

ODE AOS PÉS


entre os pés e a terra se caminha
esqueça, portanto, à porta de casa
o cadarço, os sapatos, as meias
caso não queira ser levado sem saber
a caminhos que nunca se sentiu

deixe cair por terra os pensamentos
que ultrapassam as veredas dos pés.
fique descalço como quem fica nu
não acredite nos passos posteriores
nem nos anteriores aos seus pés

todos se cansam rápido do caminho
que fora do corpo dizem existir.
muito se disse sobre as avenidas
no entanto, à medida que se aprende
detestável é o percurso que se sabe

não se lembre dos passos além
não se deixe levar pelos rastros
num dia vão verá que a passagem
terá sido aquela que nunca pisou,
que nunca esteve aos seus pés 

26 de out. de 2016

DIZENDO COMO UMA CRIANÇA



um homem me disse: o silêncio
é como experimentar a morte.
ouvi a assertiva feito uma criança.
sem qualquer dificuldade afirmei:
por isso nunca se sabe do silêncio
- a morte alguma vez foi sentida?
o que não se sente não é nada

o silêncio, nunca o sentimos
muito do que se acredita não existe:
é como pensar que se sente morto.
isso tudo ficou claro para mim
e o homem adulto, previsível, disse
você parece bastante doido.
respondi: sou doido feito criança



28 de set. de 2016

EM CADA CANTO HÁ UMA LUA



I
em cada canto há uma lua
que surge e na qual habito,
como quem vai para longe
e faz da prata a sua luz.
quando me canso da terra
me despeço de todo mundo
sem dizer, gritar, interrogar

quando me canso da terra
vou embora para a lua:
esta que flutua nos cantos
vista na altura dos olhos
passante no meio da rua

II

há coisas que são lua.
mas nunca sei onde ela está
no leste ou no oeste
na esquina ou no quarto.
sim, cintila muito antiga
mas nunca sei onde está:
de repente as luas caem
feito pessoas que são lua:
chegam, não me lembram
deitam em mim e desço
mas nunca sei onde está

III

quando me canso da terra
vou embora para a lua:
mas não vou para ficar
(quem fica desgosta)
então, volto no passo de ir
e quando novamente vou
volto no passo de não ter pisado 
em nenhuma outra terra
senão nesta
nesta mesma em que vivo lua

23 de ago. de 2016

FUNGOS



os fungos se fundaram de vez,
se fundiram aos outros fundos
e agora se vive de fungar os dias
ruidosos aos profundos ouvidos

os fungos são muito fundos:
nas entranhas, nos recursos
nas contas furtadas
na carência das palavras
nos papéis dos burocratas
nas histórias dos triunfos
nos arcos triunfais fungados

aqui se fungam os tempos, as horas
e na unha o fungo se edifica
pois se funde ao resfriado
do ser e das almas vitoriosas


(um lenço, por favor, para assoar!
e para a unha infectada, por favor,
pasta de erva ou esmalte para sair desta furna.

que praga este fungo enfurnado em tudo!
fungo sem data! 
quem se lembra de onde veio?
depressa, tragam fungicida!

a vizinha me trouxe um remédio.
o fungo desapareceu por uns dias,
mas do que adiantou se provocou irritação?

um lenço, por favor, para assoar! 
e para a unha infectada, por favor, 
um enlevo esmaltado para esta mentalidade daninha)

Do livro Água Fria (em elaboração)

17 de jul. de 2016

VOLTAR



voltar a este quarto
às cortinas
à janela
às toalhas
à cama
voltar ao espelho
voltar como sempre
ao mesmo deste lugar

foi nesta hora
que quase me deixei
ser o mesmo
com os objetos do quarto.
por um momento
quase deixei o beijo
como um passado
e me lancei a dormir
o sono de olhares iguais.
por pouco não me estendi
sobre a cama como roupas
penduradas em cabide.
mas foram essas roupas
as últimas coisas iguais

agora volto
como se estivesse indo
porque tua nudez,
tua pele, teus beijos,
teus dedos e abraços
o moreno do odor de teus braços
me fizeram voltar

como se nada fosse antes

Jefferson Bessa
Do livro Chão da pele (2015) 

18 de jun. de 2016

ARARA OU ARAGUAIA

A Rogel Samuel

quando a saliva resseca 
com o sal da água do mar que escama,
a audição afasta a náusea,
pois rios e voos ecoam de lá
descem e ressoam entre pedras.
asas e águas perpassam 
e falam arara ou araguaia.
o úmido na língua se deixa
aguando em doce de rio
engrandece plumas que reluzem 

elas deságuam na boca 
escorrem e não engasgam
passam ao vento como pôr do sol de janeiro
e brilham vermelho de lua entardecendo

aguadas araras e araguaias -
há um atraso na língua quando as diz,
pois tardam em suas tardes
amanhecem tardemente em vermelha arara
anoitecem azulantes na corrente da araguaia

13 de mai. de 2016

BASTA SE SENTAR À MINHA FRENTE




basta se sentar à minha frente
nem preciso chegar pela mão
porque sei tocar bem leve,
meus olhos aprenderam a ver.
chegam muito discretamente
num gesto de pequena violação
a quem gosto e não sabe ver
na cisma de traje que o preserve


do que os olhos podem alcançar
o outro pode não ter conhecimento
mas sob a linha da visão existe
o que se pode sentir na textura:
desliza sobre a pele, sabe deitar
no macio áspero e no tocar lento
que desce num tempo que dura.
pra se ver é que um corpo existe


Jefferson Bessa
Do livro Chão da pele (2015)

26 de abr. de 2016

ME LEMBRO BEM CLARO


me lembro bem claro
te levo aqui perto
agora bem nas mãos

ausente, pois te vi
ontem passou por mim
e agora ainda vejo

ter visto se espalha
e passa por entre mãos,
olhos, boca e pescoço

me lembro bem claro
os olhos te guardam
aberto nas retinas

te levo e tua imagem
agora me vem presente
dentro da mão me deita


Jefferson Bessa
Do e-livro Chão da pele (2016)

2 de abr. de 2016

NU Nº4



a nudez clareia sozinha. 
quantas vezes me disse 
se não houvesse roupa 
não haveria nudez alguma, 
que o tecido de desnudar 
veste a existência da nudez. 

sua voz quando isso diz 
se esconde, se esquece 
de ver nos olhos a centelha 
do corpo no simples ver. 
veja: não vela nem desvela 
a nudez se desnuda sozinha.


Jefferson Bessa.
Do e-livro Chão da pele (2015)

6 de mar. de 2016

NU Nº 3

NU Nº 3


se distancia, mais longe embaça 
a distância não engana 
depois da fumaça não te busco 

em ar de sombras te vejo certo 
na visão que em mim te oscila 
em linhas que molham ao longe 

sobre a cama se deitam os olhos 
por dentro d'água as mãos 
por entre os vidros tua nudez 

indo e vindo tão lento aos olhos 
deitado, não te vejo incerto 
te vejo plenamente em banho

Jefferson Bessa
Do e-livro Chão da pele (2015) 

21 de fev. de 2016

NU Nº 2

NU N º 2




não era o sono de quem dorme 
mas o sono de quem olhava 

de olhos cerrados acenou-me 
o corpo em relevo se deitava 

os olhos de repente não viam 
eram mãos como areia molhada 

em umidade os olhos escorregavam 
delineando um gesto feito onda 

nos traços do outro que agora sou 
não apenas transpiro ao teu lado: 

o meu corpo em rio repousou 
na nudez de teu corpo deitado


Jefferson Bessa
Do e-livro Chão da pele (2015)

31 de jan. de 2016

PASSANDO PELA RUA: POEMA DO LIVRO 'CHÃO DA PELE'

PASSANDO PELA RUA

passam dois, quatro, seis olhos
me olham
como se quisessem descobrir
o que no instante reluz

provável que tenham no desejo
o que dos meus olhos escapa

(poderia pensar que me vigiam
ou me convocam.
no entanto, essas oscilações
não importam

poderiam me julgar que eu nos olhos
do meu sujeito exacerbado
vejo os olhos alheios
por dentro dos meus)

alguns podem não ter consciência
e sentem no olhar,
mas outros sabem
pelo imediato do olhar
o que seu também sabe sentir

é que os corpos acordam
ao encontro dos que passam,
por isso se dá passagem
à transpiração entre olhos:

na verdade, quem vejo
quem me vê
é o Amor de minutos atrás
no corpo ainda sinto
e aos olhos se revela
translucidamente


Jefferson Bessa
Do e-livro Chão da pele (2015)