1 de mar. de 2021

Salivar e suar frio de branco

Me pintaram todo de branco
Estou úmido de branco
Me banharam de tinta e voz.
O mesmo branco da parede do quarto
Já passado, desbotado.
Amanhã virão aqui me pintar
Passar em mim mais uma demão
Me lambuzar de espessas camadas de tinta

Luís, o vendedor, sempre revende tinta importada
Tinta europeia, não há melhor para tingimentos
Esconde, faz a absorção completa, absoluta
Por isso se sobrepõe às demais.
Logo no início, a pele cria uma crosta
Depois entranha, resseca, dura como pedra
Pedra polida do branco, pedra intacta
Tudo feito de matéria pensada
De pensamento alvo para tingir o alvo
Pedra cuidadosamente feita com faca amolada
E atinge em cheio, fica cravada na alma

(Me lembrei do rapaz que se matou.
Segundo a mãe, ele dizia que voltaria branco
Acreditava em reencarnação
Morreu com o branco encardido na pele e na alma
Ninguém sabe se voltará, mas o branco o tingiu e atingiu)

De repente, comecei a salivar e a suar frio de branco
Não me venham os lógicos e os físicos dizerem
"Branco não é cor, é a junção de todas as cores"
"É cor por causa da ausência ou presença de luz"
Ah, não quero esses saberes!
Fiquem bem longe, vocês, Luís e seus significados.
Não venham me encher de claridades
Físicas, metafísicas, solares, diurnas.
Não me venham com tingimentos
Etéreos, deturpados, arrogantes, soberanos.
Fiquem pra lá com seus reis, histórias e deuses solares.
O que tenho agora? O branco antigo 
Cada vez mais encardido.
Vejam a rua, todos olham, comem, se apaixonam
Compram, choram e riem brancamente

Estou entranhado, suado da sujeira desse branco
Estamos sujos, embaçados, embaraçados
Entremeados nesse branco cinza amarelo 
Que diz a tal pureza, as tais qualidades superiores.
Não me venham com seus símbolos de alvura
Essa frescura idealista, essa frescura de inocência.
Devem ainda imaginar que sinto o resquício
De todo o frescor desse tingimento, pensamento. 
Pois bem, fiquem longe com suas canduras
Voltem com suas brancas de neve e cavalos brancos
Já não aguento mais esses signos
Metáforas de cisnes, auroras e luzes
Todas essas mercadorias límpidas.
Caiam fora, não perturbem
Levem suas noivas, suas virgens e limpezas espirituais
Me deixem em paz e levem suas pombas da paz 
 
Vejo por fora a casa pintada de branco
Mas o que tem por dentro também se fez branco.
Pintaram tudo, tudo!
Que cor tem as paredes, os sentimentos, os pensamentos?
Encharcaram as superfícies
As fibras absorveram
Pintaram tudo de branco

Procure imaginar que cor teria a alma, se ela pudesse ter.
Busque a cor da alma, ainda que não acredite em alma.
Logo me vem a imagem do branco translúcido.
Pintaram até a minha imaginação, 
Não imagino, portanto. Não tenho outras cores.
Muitos por aí supõem que imaginam, coitados!
Enquanto eu, vivi até agora com o que restou: 
uma ideia, uma imagem, um sentido,
A ideia que faço de mim feita por quem faz por mim

Ah, o branco, o branco...
Vejo muito bem, enxergo muito bem
Neste instante ainda mais, os sentidos aguçados
Estranhos, instáveis, ligados.
Digo com toda a certeza
Esta casa não é branca
Meu corpo não é branco
Esta tinta não é branca
Todos são o branco.
Acima de todos ele se impõe.
Vejo meu corpo, já não é corpo.
Antes dele, vejo o branco.
Assim como o branco da tinta
Da casa e da rua e das pessoas

Suprassensível é o branco
Substância suprema
Solidamente aquosa
arrogante, perigosa

2 comentários:

Anônimo disse...

Uma pancada.
Parece q estou no teatro e você é o ator no palco.

Jefferson Bessa disse...

Quem dera fosse ator de teatro! (risos)
Bom que conseguiu visualizar o palco, uma vez que busquei inserir elementos dramáticos e de encenação no poema. Agradeço a leitura.