30 de nov. de 2011

ANDO MUITO LENTO, MUITO LENTO

ando muito lento
mais lento que a lentidão
talvez mais lento que o animal mais lento
por isso tenho infinitas afinidades
com uma senhora - minha vizinha.
quando saímos juntos, andamos tão lentamente,
andamos numa lentidão superior às fraquezas dos ossos.
superior até mesmo a qualquer retardamento mental.
nessa lentidão especial é que conversamos
caminhamos quase parados

sempre parado, assim fico
sempre parado
como quem não sabe se vai ou se fica
sem saber qual é a próxima parada
tão parado que não sei nem mesmo onde parar

a rua corre, a cidade cresce
a cidade julga caminhar em velocidade
as mensagens voam,
e tudo me faz querer parar

quando olho ao meu redor
e vejo passar o automóvel
ou a nave mais veloz do mundo
sinto-me plantado no chão
empacado como o automóvel mais velho do mundo
identifico-me com uma árvore na calçada
com um camelô no meio do caminho
com um poste, um assento, uma avenida congestionada

a cidade se julga muito rápida
mas subo e desço as ruas lentamente.
alguma coisa na cidade sonha a rapidez
mas nela só há arrastados passos
e caminhamos nas ruas
eu e minha vizinha

dirão que o retardo em mim
provém do excesso de cidade.
dirão que sou um vencido.
mas minha lentidão é inerente
sempre estive lento
demorei a nascer
e nesta cena me mantenho
como um drama sem ato

18 de nov. de 2011

NECESSIDADES

organizaram minhas necessidades sem eu pedir
ontem mesmo decidiram por mim
que preciso suprir todas as minhas carências.
terei de pô-las umas sobre as outras,
numa sequência hierárquica das necessidades
amanhã receberei a tabela do que se deve fazer
minhas prioridades conhecerei amanhã

aparelharam em mim os elementos indispensáveis
aceitei sem saber. Entrei num estado de passividade
como quem se desliga e se liga frente a uma tela.
amanhã serei os corredores de uma empresa
uma mão invisível me medirá, serei os departamentos
passarei como veículo que carrega ou de pé estarei
feito uma estante firme com espaço a ser preenchido

seguirei a viver numa sequência de necessidades
como os que abastecem os sentidos como depósitos
expostos um sobre o outro numa escala eterna
de ir e vir ao mesmo ponto de querer a mesma coisa.
substituíram ordenadamente minhas necessidades
organizaram administrativamente minhas vontades
energizaram meu corpo como uma embalagem

6 de nov. de 2011

PRIMEIRA NOITE

estive por inteiro num corpo
que não conhecia
era a primeira noite

lembro que a noite era
de muita chuva
e hoje me chovem as noites e os dias

jamais saberei quem foi este
tu que vieste
na presença de um sonho
de transpirar

quando acordei
pulsando e trêmulo
encharcava todo o quarto

e já deitado sobre
o lençol branco

sobre a terra estendido
respirei o odor branco de chuva
o cheiro de corpo molhado

do rosto com quem sonhei
vislumbro poucos traços
mas tenho sob a vista
sobre a cama
o instante do sonho
derretido em branco