14 de nov. de 2017

ONDE FOI QUE EU VIM PARAR?


onde foi que eu vim parar?
me largaram nesta terra
nesta em que só se tem
pés e passos que saem
para estar em outra terra

nem se vê simples o solo
pois antes do chão se vê
o céu. Mas deste nada brota,
nada rebenta, nada rasga
e mantiveram os pés no céu

deste dia pra cá se perdeu
o azul, o marrom, o lilás.
por isso aqui me pergunto
onde foi que eu vim parar?
nesta terra sem terra alguma
neste céu que é outra coisa

desses olhares à distância
ao meu redor me cerquei
me prendi e aqui parei.
de tanto ouvir ao longe
fico e imagino outra terra
cansado do que não existe

dizem que me aborreço
desta terra, de estar aqui.
nada disso, nada disso!
esgotado de ter que sair
dela - disto estou cansado -
de olhos que olham pra lá

às vezes me põem algemas
estas de rejeição e ojeriza
e fico em linhas cáusticas.
sem dar por isso me deixo
às vezes ir para esta noite
pobre, cheia de sono pesado

daí olho para o chão e sorrio
e vejo que devo retirar o céu.
não o céu azul acima de mim
mas este que roubou o chão
que leva ao "onde vim parar?"
no qual eles insistem em pisar

Do e-livro Água Fria (2017)

23 de out. de 2017

OLHOS-PORTA



meus olhos acordaram feito dobradiças
abriram num canto de porta enguiçada.
estes olhos esquecidos de lançar óleo lubrificante
começaram a ver por ouvir ranger a abertura.

me tragam o lubrificante pois não há lágrima!
quem trará aos meus olhos o verniz de ver?
as retinas se soltaram - o pino das dobradiças!
que viço, que líquido, que água pode umedecer?

me tragam um alicate, acabem com o rangido
pois ainda se abrem arranhando, quase ruindo.
sinto meus olhos-porta, estão despencando
quem colocou a ferrugem impedindo de abrir?

espero que não me tragam lubrificante de cegar.
e se - como quem frita pela décima quinta vez -
me trouxerem óleo de cozinha reutilizado pela décima quinta vez?
meus olhos cegarão de vez, eles já estão ruindo.

então, me tragam sabão para esfregar 
e inserir nas entranhas dos olhos. Vão arder de limpar!
às vezes tenho surtos de vida sanitária!
no entanto, não, aqui não se pede sanidade.

e se me trouxerem uma água para além d'água!?
mas a minha vizinha sã me trouxe água sanitária.
os olhos ficarão piores do que acordaram
o barulho ficará ainda mais cego e insuportável

não me tragam mais nada, me deixem emperrado
nas dobradiças dos olhos que me trouxeram.
não deveria ter pedido, tenho a mania de pedir.
triste pedir, pois alimenta o ranger das dobradiças

não me tragam nada, pois já me trouxeram 
o enguiço dos meus olhos antes de acordar.
eu, rangendo, me perdi ao pedir - vejam só -
aquilo que me trouxeram bem antes e longe


Do e-livro Água Fria (2017)

12 de set. de 2017

SEM OS PÉS



há muito acordo sem os pés
mas nunca me vi sem eles
mas hoje a manhã ardeu
sequer andei até a porta.

retiraram minhas pernas
como quem extrai ouro.
as veias crescem de novo
como as sementes lentas.

mas ainda não vejo as pernas,
mas logo serão retiradas
e agora meus pés doem
sem os ter nesta manhã.

doem as pernas sem elas
como se ainda as tivesse.
caminho sem caminhar
passo sem ter um passo.

a andança pelas ladeiras
é o cansaço de me levarem.
sem pernas me deixaram
assim acordei nesta manhã.

talvez um dia me devolvam,
sonhei hoje no fim de tarde
- quase noite - com as pernas.
a firmeza da noite começava.

mas ao acordar era manhã
a dor nas pernas ainda existia
sem elas as sentia e as via.
elas me ficam por extração.

Do e-livro Água Fria (2017)

20 de ago. de 2017

CRESCE UM BARRACO AQUI


cresce um barraco aqui:
fora de mim em quarto
aqui dentro em colina

é visto como o que se vê:
o barraco cresce de uma tábua
da alma tangível de madeira

e mais: decresce despregado,
é que de queda cresce aqui
e um tijolo se desmantela

será ele do quarto da alma
ou do quarto daquele barraco:
materiais de pedra e além

cresce ainda um prego aqui
e lá caindo em crescente
sustenta e crava o barraco 

Do e-livro Água Fria (2017)

4 de jul. de 2017

DESTRABALHAR


deve trabalhar - ouço desde criança.
deve trabalhar todos os dias, oito horas
ou mais tempo na hora extra.
mas extra é o próprio trabalho,
os dias querem me trabalhar
para agora ficar aqui trabalhado.
mas basta destrabalhar para ver que esta vida é hora extra
porque o extra dos dias sempre nos quer trabalhar
para viver no serviço das horas.

poderão pensar que sou vagabundo
mas o que fazer com quem vive em extremos
e só entende duas afirmações:
"trabalho, por isso não sou vagabundo"
e "vagabundeio, por isso não sou trabalhador".

digo que não sou nem um nem outro,
pois ser trabalhador ou vagabundo se assemelham.
não participo do cristianismo de gravatas e trapos
nem da dignidade laborativa de caridade
nem da mendicância invejosa de querer o adoçante alheio
nem das vantagens de liquidações comerciais para dar felicidades liquidadas.

quando destrabalho me despeço do tempo medido
me despeço da riqueza e da pobreza.
me despeço de facilidades
de felicidades e tristezas.
Sou este que destrabalha
porque não fico nem rico nem pobre,
portanto não preciso enriquecer ou roubar.

encerrado na cidade, uma vez ouvi de um homem
que falava de trabalho como obrigação.
mas obrigar ou pedir obrigado é brigar com alguém.
para ele a obrigação abriga
para mim a obrigação extrai briga.
digo briga, pois pergunto: para que e para quem se trabalha?
não fico só em dependências interrogativas quando destrabalho.
me dizem para ter cuidado, pois posso ser preso,
mas na cidade estamos presos às obrigações.
os vagabundos estão presos, porque querem dos trabalhadores.
os trabalhadores estão presos, porque querem o trabalho dos vagabundos.
ricos e pobres estão nesta mesma cidade e se avizinham.
tudo isso tem a aparência de natural
e, ao mesmo tempo, tudo passa como entretenimento.

um dia desse veio um mendigo me pedir
me obrigava a lhe dar uma esmola.
em seguida, um outro me obrigava a comprar, pois dizia que estava a trabalho.
ora veja, mendigo mesmo não obriga a receber esmola.
lhe disse que era um trabalhador vestido de mendigo
e ao outro disse que nenhum trabalho obriga a ninguém comprar.

o destrabalho vive com pouco
para quê ter mais do que necessito?
ou ter além do que posso ter?
me cobrarão cuidado, pois "mente vazia é oficina do diabo"
querem me colocar o diabo para me obrigar
para me fazer pensar que não valho nada.
para eles não valho mesmo,
porque o diabo na minha mente vazia brinca.

agora, atenção, muita atenção, não com o diabo
mas com quem quer te trabalhar o trabalho.
todos os diabos vêm de lá.
querem me preencher de medos, de intimações,
me acham muito vazio.

vivo com pouco e gosto de conversar
e ouvir quem destrabalha.
nos juntamos lá na esquina - não para futilidades.
lá vem minha vizinha, vem sempre muito lenta
teremos muito destrabalho
não precisamos de nada além do que temos.
ela chega e a conversa também segue lenta
ali vamos destrabalhando.

Do e-livro Água Fria (2017)

8 de jun. de 2017

VISTA DA CIDADE



os olhos correm em velocidade
móveis seguem, imóveis ficam

os olhos correm vendo os imóveis
mas dentro e fora tudo é paragem

a velocidade imposta e crescente
ao caminho pelos barrancos passamos

esbarrando nos barracos tudo ascende
a terra plana se nivela aos altos do morro

minha mente aos poucos se desmantela
pois falta martelo, nem posso pendurá-la

tudo balança no ar, tudo balança na alma
os prédios trepidam, as árvores caem

os olhos para fora das madeiras são pregos
os braços, madeiras dependuradas ao vento

a luz piscou e a energia faltará em instantes
ah, mas já me falta energia para continuar!

tentei seguir, mas tudo cresce descendendo
em grande velocidade o poema se acabou


Do e-livro Água Fria

1 de mai. de 2017

Poema Água Fria



levei um banho de água fria
como se chovesse há séculos,
como a chuva que veio do mar
e deixou um pouco de brasa,
pois a fogueira logo foi levada
e, sem o fogo, apenas abrasou.

o dia estava quente, era solar,
pouco solar, pois a brasa exige 
tempo, mas começava a estalar,
se ouvia e refletia sua centelha.
a lenha ainda seria melhorada,
mas levei um banho de água fria

antes mesmo de se ver acender
a fogueira, voltei à antiga brasa.
brasa que com a água se fez lama.
e no ar o odor de fogueira apagada,
na terra as cinzas viviam fumaça,
e a água obstruía os caminhos.

senti a água fria em dia quente 
o arcaico banho apagou a brasa.
dela devem ter feito um brasão
também arcaico. Foi quando vi
a fria água escorrendo no corpo:
era medrosa, presa em conserva

se guardou e ainda se guarda
esta água num braseiro úmido.
mantida com gelos e gosmas
ela inflama por não ter chama,
sua brasa ao chamar se apaga
para dar um banho de água fria.

Do e-livro Água Fria (2017)

29 de mar. de 2017

ÁGUA FRIA: TERCEIRO E-LIVRO DE POESIA DE JEFFERSON BESSA



TERCEIRO E-LIVRO DE POESIA DE JEFFERSON BESSA

PARA LER CLIQUE AQUI



COM A PUBLICAÇÃO ABERTA, SE QUISER LER EM TELA CHEIA CLIQUE EM [  ] AO LADO DO +. 
PARA SAIR DO MODO TELA CHEIA, USE ESC NO TECLADO.

3 de mar. de 2017

nudez rasa


ficar na cama com o calor
e ter o corpo sem envergadura

arrastar todo meu rosto ao suor
na nudez rasa em seu desenho

fluir sempre devagar por entre braços
venerados na linha reta das curvas

estar alinhado como verso
entrelaçado em pernas volumosas

olhar a tarde em névoa quente
deixar-me escorrer por mãos

atentar ao corpo em pouco raciocínio
como simples calor a pele sente

Do livro Chão da Pele (2015)

24 de jan. de 2017

SALDO ANUAL

  
sim, a economia do país cresce 
mas nas contas que fizemos 
grande parte vem das maravilhas, 
das ilhas, das filhas, das meninas. 
mas também dos meninos, dos físicos, 
dos ares afrodisíacos. 
sim, nas contas que fizemos 
o afro que se lê em afrodisíaco 
provém das rendas de Afrodite. 
não, no balanço dessas contas 
tivemos de fazer a retificação: 
o afro somado ao tempo 
nos dá o resultado de que afro 
deve ser calculado com africano, 
assim, o saldo se afasta dos gregos. 
para chegarmos ao verdadeiro saldo: 
temos que somar o gringo  
mais o povo que para ele vem rindo 
mais as correntes que nos prendem. 
sim, a economia do país cresce.

2012